Papel causal secundário ou central do ambiente na biologia, medicina e filosofia da biologia
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Parte I
Na biologia e na medicina, o papel causal secundário do ambiente na saúde muitas vezes é entendido dentro de pressupostos teóricos que priorizam fatores internos — como a genética, a bioquímica e a fisiologia — como causas primárias das doenças. Isso estrutura o modo como o ambiente é visto: como um modulador, um gatilho ou um fator de risco, e não como causa determinante por si só. Abaixo estão os principais pressupostos que sustentam essa visão:
1. Modelo biomédico reducionista
Pressuposto central: a doença é causada por anormalidades biológicas mensuráveis, principalmente no nível celular ou molecular.
Implicação: o ambiente só tem papel causal se alterar diretamente esses processos internos.
Exemplo: exposição a vírus ou toxinas é considerada causa só se levar a alterações fisiopatológicas.
2. Primazia da genética
Pressuposto central: muitos problemas de saúde são de base genética ou hereditária, com o ambiente ativando ou inibindo genes predisponentes (epigenética).
Implicação: o ambiente é secundário — importante, mas dependente da suscetibilidade biológica.
Exemplo: no câncer ou em transtornos mentais, fala-se em “gene de risco” ativado por estresse, abuso, etc.
3. Homeostase e autorregulação corporal
Pressuposto central: o corpo possui mecanismos internos de autorregulação e busca constante de equilíbrio.
Implicação: alterações externas são compensadas até que o sistema interno falhe — o ambiente é “desestabilizador”, não causador direto.
Exemplo: doenças autoimunes ou metabólicas só se manifestam após quebra de um equilíbrio interno, ainda que o ambiente contribua.
4. Enfoque na intervenção farmacológica ou cirúrgica
Pressuposto central: os tratamentos eficazes devem atuar nos mecanismos internos (neurotransmissores, hormônios, receptores, tecidos).
Implicação: terapias baseadas em mudança ambiental (como apoio social, moradia, trabalho, alimentação) são adjuvantes, não principais.
Exemplo: uso de antidepressivos é mais valorizado que terapia ou inserção social, porque o primeiro atua diretamente sobre o cérebro.
5. Separação mente-corpo (dualismo moderno)
Pressuposto central: mesmo quando se reconhece influência psicológica ou ambiental, ela é mediada por alterações biológicas mensuráveis (neuroquímica, eixo HPA, etc.).
Implicação: o ambiente só importa na medida em que impacta o corpo físico objetivamente.
Exemplo: o estresse é relevante se elevar cortisol ou inflamação — não por ser uma experiência humana subjetiva desorganizadora.
6. Generalização estatística e causalidade populacional
Pressuposto central: causas são identificadas com base em médias populacionais (epidemiologia), e não em histórias individuais.
Implicação: o ambiente, por ser variável entre indivíduos, é difícil de isolar como causa. Já marcadores biológicos são padronizáveis.
Exemplo: viver em pobreza é um fator de risco, mas não é tratado como causa direta se não houver biomarcadores associados.
7. Hierarquia de evidências
Pressuposto central: o que conta como "prova científica" é o que pode ser controlado em ensaios clínicos randomizados.
Implicação: contextos sociais, culturais e ambientais são difíceis de isolar e medir; por isso, têm menor status causal.
Exemplo: intervenções comunitárias ou políticas públicas são vistas como “menos eficazes” porque não se encaixam bem em RCTs.
Em resumo:
A visão predominante na biomedicina sustenta que o ambiente influencia, mas não determina diretamente a maioria dos problemas de saúde. Seu papel é condicional, modulador, secundário, gatilho, e não causa principal. Essa posição é sustentada por pressupostos filosóficos (como o reducionismo), metodológicos (como a preferência por ensaios clínicos e por dados quantificáveis), e políticos (como a centralidade da intervenção médica individualizada).
Parte II
Pressupostos da biomedicina tradicional sobre o papel secundário do ambiente têm raízes filosóficas na filosofia da biologia, e alternativas têm sido propostas para reconceber a causalidade ambiental como central na origem e no tratamento dos problemas de saúde
▶ 1. Pressuposto Tradicional: Reducionismo e Localização Causal
➤ Fundamentação filosófica:
O reducionismo biológico sustenta que fenômenos complexos (como doenças ou comportamentos) podem ser explicados completamente pelas partes mais básicas do organismo: moléculas, genes, neurotransmissores, etc.
Enraizado no mecanicismo cartesiano (corpo como máquina), em que causas são locais, internas, e diretamente mensuráveis.
➤ Aplicação médica:
Busca-se a causa da doença em defeitos internos (mutação genética, desequilíbrio químico, etc.).
O ambiente é contexto, não causa primária — só relevante se causar uma mudança interna.
➤ Alternativa:
● Biologia Sistêmica e Interacionismo
Fundada por pensadores como Ludwig von Bertalanffy (teoria geral dos sistemas) e Denis Noble (fisiologista crítico do reducionismo).
Defende que os organismos são sistemas abertos em constante interação com o ambiente, e que causas são distribuídas e relacionais, não localizadas.
O ambiente co-participa na causalidade: ele regula, sustenta e modula a expressão biológica, sem hierarquia fixa.
▶ 2. Pressuposto Tradicional: Genocentrismo
➤ Fundamentação filosófica:
Deriva da biologia molecular do século XX (Watson, Crick, Monod) e da moderna síntese evolucionista, que tratava genes como unidades centrais da herança, da identidade e da causalidade biológica.
Reforçado por filósofos como Richard Dawkins, que propôs o "gene egoísta" como unidade fundamental da seleção.
➤ Aplicação médica:
A predisposição genética é tratada como causa fundamental, com o ambiente funcionando como gatilho (epigenética) ou fator de risco secundário.
Ex: "Você tem gene X que aumenta risco de esquizofrenia, que pode ser ativado por estresse ou uso de drogas."
➤ Alternativa:
● Epigenética Desenvolvimental e Teoria dos Sistemas Evolutivos (Evo-Devo)
Argumenta-se que o desenvolvimento orgânico depende da interação constante com o ambiente, não apenas da expressão de genes.
Filósofos como Susan Oyama (Developmental Systems Theory) propõem que não há centro causal fixo: genes, ambiente, história e desenvolvimento são coprodutores.
Isso abre caminho para explicar problemas de saúde como resultantes de histórias de interação (nutrição, afeto, exclusão, habitação, etc.) — não só como expressão de códigos genéticos.
▶ 3. Pressuposto Tradicional: Causalidade Linear
➤ Fundamentação filosófica:
Influência do positivismo lógico e da física newtoniana: causa e efeito são lineares, diretos, e separáveis.
Só se reconhece como "causa" o que pode ser isolado e testado experimentalmente (controle de variáveis).
➤ Aplicação médica:
A causa da doença é identificada por ensaios clínicos randomizados, que isolam o efeito de uma variável (por exemplo, um remédio) sobre o corpo.
Variáveis ambientais, por serem multifatoriais e difíceis de controlar, são desvalorizadas como causas legítimas.
➤ Alternativa:
● Causalidade Complexa e Emergência
Inspirada em modelos complexos e não lineares (como na biologia de sistemas e ecologia).
Nancy Cartwright e John Dupré defendem que causas não precisam ser isoláveis para serem reais. O mundo é causalmente denso, com redes de fatores mutuamente interdependentes.
O ambiente (social, político, ecológico) participa de redes causais, muitas vezes invisíveis à metodologia experimental clássica.
▶ 4. Pressuposto Tradicional: Dualismo Mente-Corpo
➤ Fundamentação filosófica:
Deriva de René Descartes, que separou substância mental (res cogitans) e física (res extensa).
Na medicina, isso gerou a distinção entre doenças "orgânicas" e "funcionais", dando mais valor àquilo que é medível no corpo do que à experiência subjetiva ou social.
➤ Aplicação médica:
Sofrimento emocional, traumas sociais ou experiências de exclusão só são "legítimos" se produzirem marcadores biológicos (como cortisol ou lesões cerebrais).
Caso contrário, são considerados secundários ou "psicossomáticos".
➤ Alternativa:
● Materialismo Encarnado e Embodiment
Abordagens como as de Merleau-Ponty, Varela & Thompson, e Fuchs mostram que a mente é sempre corporificada e situada.
Na filosofia da psiquiatria contemporânea, argumenta-se que sofrimento psíquico e social é sempre biológico por ser vivido por um corpo no mundo — não há separação real.
Isso permite tratar fatores ambientais como primários no sofrimento, independentemente de haver uma lesão mensurável.
▶ Conclusão:
A ideia de que o ambiente tem papel causal secundário na saúde é sustentada por pressupostos filosóficos específicos, como o reducionismo, o genocentrismo, o mecanicismo e o dualismo. Porém, essas ideias têm sido fortemente contestadas por correntes contemporâneas na filosofia da biologia, da mente e da medicina, que propõem modelos:
Interativos e sistêmicos, onde o ambiente participa da causalidade tanto quanto os genes ou o corpo.
Desenvolvimentistas, nos quais a saúde resulta de uma história viva de interação com contextos.
Não-dualistas, que reconhecem o sofrimento vivido como real, ainda que não mensurável diretamente.
Parte III
A seguir uma lista de autores, obras e temas fundamentais para aprofundar as alternativas filosóficas ao modelo biomédico tradicional, com foco no papel causal primário do ambiente na saúde e no sofrimento humano.
🧠 1. Filosofia da Biologia: Sistêmica, Desenvolvimental e Interacionista
● Susan Oyama
Obra principal: The Ontogeny of Information (1985)
Tese: A dicotomia gene vs. ambiente é artificial. O desenvolvimento depende de sistemas interativos — nenhum fator é primário isoladamente.
Corrente: Developmental Systems Theory (DST)
📌 Relevância: Coloca o ambiente como parte constitutiva da hereditariedade e do funcionamento orgânico.
● Denis Noble
Obra principal: The Music of Life (2006)
Tese: O genoma não comanda o organismo como um maestro, mas é orquestrado por sistemas fisiológicos e ambientais.
Corrente: Crítica ao dogma central da biologia molecular.
📌 Relevância: Defende uma causalidade ascendente e descendente (bottom-up e top-down), onde o ambiente influencia diretamente a expressão do genoma.
● Evelyn Fox Keller
Obras principais: The Mirage of a Space Between Nature and Nurture (2010)
Tese: A oposição entre natureza (genes) e criação (ambiente) é insustentável cientificamente.
📌 Relevância: Crítica à forma como a ciência isola causas internas para afirmar autoridade médica e marginalizar determinantes sociais.
🌱 2. Causalidade Complexa, Emergência e Filosofia da Ciência
● Nancy Cartwright
Obra principal: Nature’s Capacities and Their Measurement (1989)
Tese: A causalidade na ciência não é universal nem linear; depende do contexto e da interação entre capacidades.
📌 Relevância: Questiona a hegemonia dos ensaios clínicos como única forma válida de estabelecer causalidade em medicina.
● John Dupré
Obra principal: Processes of Life: Essays in the Philosophy of Biology (2012)
Tese: A biologia deve abandonar o modelo de entidades fixas (como genes) em favor de processos interativos.
Corrente: Processualismo biológico
📌 Relevância: Reconhece o ambiente como parte do processo contínuo que produz saúde ou doença.
● Silvia De Cesare (Brasil)
Temas: Epistemologia da biomedicina, filosofia da biologia, crítica ao reducionismo em genética.
📌 Relevância: Debate sobre epigenética e plasticidade fenotípica como desafios ao genocentrismo.
🧍 3. Embodiment e Filosofia da Mente Corporificada
● Shaun Gallagher e Dan Zahavi
Obra principal: The Phenomenological Mind (2008)
Tese: A mente não é apenas cérebro — é sempre vivida corporalmente e situada no mundo.
📌 Relevância: Fundamenta uma abordagem psiquiátrica não-dualista, onde sofrimento emocional e social são corporais por definição.
● Thomas Fuchs
Obra principal: Ecology of the Brain (2018)
Tese: A psiquiatria deve considerar o “cérebro ecológico” — em relação com o corpo, o ambiente e o tempo vivido.
📌 Relevância: Propõe uma psiquiatria fenomenológica que insere o ambiente como parte do adoecimento e do tratamento.
🏥 4. Crítica Social e Filosofia da Medicina
● Ian Hacking
Obra principal: The Social Construction of What? (1999)
Tese: Os diagnósticos e categorias médicas são construções históricas que refletem mais os valores sociais que causas biológicas.
📌 Relevância: Questiona o status ontológico das doenças mentais, revelando como o ambiente social legitima ou patologiza comportamentos.
● Nikolas Rose
Obra principal: The Politics of Life Itself (2007)
Tese: A biomedicina moderna produz sujeitos governáveis ao internalizar os riscos sociais como responsabilidade individual (ex: “cuide do seu cérebro”).
📌 Relevância: Critica como o ambiente é despolitizado no discurso médico, mesmo sendo central no sofrimento.
● Vinciane Despret
Obras: Diversas sobre ciência, etologia e saúde.
Tese: A causalidade em saúde não é objetiva e estável — depende das práticas, relações e modos de escuta.
📌 Relevância: Valoriza o modo como os sujeitos constroem sentido de sua dor em relação ao mundo — não apenas a causa mecânica.
🧰 BÔNUS: Leituras em português acessíveis
Canguilhem, Georges – O Normal e o Patológico → Origem histórica da normatividade em saúde.
Sawaia, Bader – sobre sofrimento ético-político.
Campos, Gastão Wagner – Saúde Paideia → ambiente, autonomia e cuidado coletivo.
Lancet Commission on the Value of Death (2022) – discute causas sociais de adoecimento e medicalização excessiva.