Modelo de evidências em medicina e alternativas: escalabilidade versus individualização
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Parte I
A predominância do modelo hierárquico de evidências da medicina — com os ensaios clínicos randomizados (ECRs) no topo da pirâmide — e a omissão frequente de modelos mais sensíveis à validação externa e contextos individuais, como os da terapia ocupacional ou os que valorizam desenhos de sujeito único, se explicam por uma combinação de fatores institucionais, epistemológicos e econômicos.
Motivos
🔹 1. Financiamento e estrutura dos sistemas de saúde
Modelos biomédicos baseados em ECRs são os mais valorizados por agências reguladoras e financiadores públicos e privados, como ministérios da saúde, planos de saúde, farmacêuticas e agências como a FDA ou ANVISA.
Ensaios clínicos são padronizáveis e escaláveis, o que os torna mais atrativos para políticas públicas e investimentos privados, que visam intervenções replicáveis em massa.
Medicina baseada em evidências (MBE) se consolidou como linguagem dominante na alocação de recursos e na regulação de práticas clínicas, moldando inclusive diretrizes terapêuticas e formação profissional.
🔹 2. Colonização epistemológica por parte da medicina
A medicina se consolidou como disciplina de referência nas ciências da saúde, e impôs seu modelo de validação do conhecimento a outras áreas — como fisioterapia, enfermagem, fonoaudiologia, terapia ocupacional e até mesmo psicologia clínica.
Isso resultou em uma valorização quase automática dos ECRs e metanálises, mesmo quando o objeto de estudo exige abordagens individualizadas ou contextualizadas, como no caso de práticas educativas, ocupacionais ou psicossociais.
🔹 3. Ignorância ou negligência sobre validade externa
O modelo tradicional da pirâmide de evidências prioriza a validade interna (controle de variáveis, aleatorização, cegamento), mas frequentemente sacrifica a validade externa, ou seja, a aplicabilidade no mundo real.
Pesquisadores de áreas como a terapia ocupacional, análise do comportamento e educação há décadas argumentam pela importância da validade externa, propondo modelos alternativos que incluam desenhos de sujeito único, estudos de caso sistemáticos, e avaliações situadas.
No entanto, esses argumentos recebem pouca visibilidade em periódicos biomédicos de alto impacto ou nos currículos de formação clínica tradicional.
🔹 4. Pressão por evidência “forte” e generalizável
Há uma tendência, tanto entre profissionais quanto gestores, de buscar respostas universais para problemas complexos e multifatoriais — como se uma intervenção pudesse ser “eficaz para todos”.
Isso faz com que modelos flexíveis, individualizados e sensíveis ao contexto sejam vistos como “fracos” ou “subjetivos”, mesmo quando são metodologicamente robustos e clinicamente relevantes.
🔹 5. Pouca tradução do conhecimento interdisciplinar
Modelos como o da Evidence-Based Occupational Therapy ou da Prática Baseada em Evidências com foco na clientela (client-centered evidence) circulam muito mais entre profissionais de áreas específicas e não são amplamente traduzidos para a linguagem médica ou política.
Além disso, revisores e editores de periódicos biomédicos geralmente não têm formação interdisciplinar suficiente para avaliar o valor desses modelos fora do padrão biomédico.
✅ Conclusão
A hegemonia do modelo biomédico de evidências é sustentada por interesses financeiros, regulações estatais, inércia institucional e limitações epistemológicas. Modelos que reconhecem a validade externa e o contexto individual — como os da terapia ocupacional e os de sujeito único — tendem a ser subvalorizados não por fragilidade metodológica, mas por não atenderem às demandas de padronização, escalabilidade e controle centralizado de recursos.
Parte II
📊 1. Comparação visual dos modelos de evidência
🔺 Modelo tradicional da pirâmide de evidências (medicina baseada em evidências):
Nível 1
Metanálises / Revisões sistemáticas
▲
Ensaios clínicos randomizados (ECR)
▲
Estudos de coorte / caso-controle
▲
Estudos observacionais / transversais
▲
Relatos de caso / opinião de especialistas
➡ Foco: validade interna, controle, generalização estatística
➡ Problema: baixa validade externa; não capta individualidades nem contextos reais
🧩 Modelo baseado em prática centrada no cliente (ex.: terapia ocupacional, análise do comportamento aplicada, psicologia contextual)
Alta validade interna e externa
▲
Desenhos de sujeito único
▲
Estudos de caso sistemáticos / N-of-1 trials
▲
Estudos mistos + observação contextual com medidas contínuas
▲
ECRs como um dos métodos possíveis, não o ápice
➡ Foco: Validade ecológica, mudança funcional em contextos reais, sensibilidade à variação individual
➡ Prioriza: efeitos mensuráveis no indivíduo, intervenção ajustada, replicação sistemática
🧪 2. Exemplos em que o modelo sujeito único superou os ECRs
🔹 Terapia ABA para autismo
Estudos de sujeito único desde os anos 1970 (ex.: Lovaas) mostraram melhorias significativas em comportamento, linguagem e autonomia.
Muitos ECRs falharam em replicar os mesmos efeitos porque:
Uniformizaram intervenções altamente individualizadas;
Ignoraram a função do comportamento e o contexto do reforço;
Aplicaram protocolos de forma "cega" ao indivíduo.
Conclusão: os estudos de sujeito único foram cruciais para detectar o que funciona para quem, ao contrário dos ECRs.
🔹 Intervenções comportamentais para insônia
ECRs tendem a concluir que a eficácia é "moderada", com alto índice de variabilidade.
Estudos de sujeito único mostram que pequenas adaptações (ex: alterações na rotina, contingência de reforço para despertar) têm impacto relevante.
Intervenções que não alcançariam significância estatística em grupo podem ser eficazes clinicamente no nível individual.
🔹 Uso de tecnologias assistivas na reabilitação
Terapia ocupacional frequentemente testa dispositivos (cadeiras, utensílios, adaptações) em função da vida real da pessoa.
ECRs não são eficazes para avaliar essas intervenções porque:
As necessidades são heterogêneas;
Os critérios de sucesso variam (qualidade de vida, participação, não só redução de sintomas).
Estudos de sujeito único capturam essas nuances com medidas repetidas em contexto.
🔹 Avaliação de efeitos adversos individualizados (como no uso de neurolépticos)
ECRs têm dificuldade em captar reações raras ou variáveis.
Estudos de caso com monitoramento contínuo (ex.: variação de RMSSD, sono, atividade motora) detectam padrões pessoais que são invisíveis na média populacional.
Isso é central, por exemplo, em decisões de continuidade ou retirada de medicamentos em contextos psiquiátricos complexos.
✅ Conclusão prática
🔎 Se a pergunta clínica é "isso funciona em média?", ECRs são úteis.
🔬 Se a pergunta é "isso funciona para esta pessoa, neste contexto?", então desenhos de sujeito único ou metodologias centradas no cliente são indispensáveis.
📚 Esses modelos alternativos não são inferiores — eles apenas têm outra função epistemológica. A omissão deles é, muitas vezes, uma estratégia institucional para manter hierarquias de controle e financiamento.