A medicalização e as demandas de mercado
A medicalização segue a lógica da demanda de mercado. Demandas de mercado não são necessariamente bem caracterizadas. A autoridade científica confere legitimidade às demandas de mercado. Por isso é importante para o pensamento medicalizante negar a relevância do espaço e tempo. A medicalização responde às demandas sociais e a criação/aumento de demandas envolve a formação do imaginário ou mentalidade da população em termos medicalizantes - o que é feito de forma planejada e estratégica na mídia, na educação dos profissionais e educadores. Por isso, a inércia reflexiva, a desconsideração de condições sociais que contribuem na produção/formulação de conhecimento e a desistorização favorecem a medicalização.
Segundo José Ruben de Alcântara Bonfim: "O tratamento medicalizador atua na periferia dos problemas. Seria necessário atuar nas relações econômicas, sociais e culturais mas como o médico não tem controle sobre o ambiente receita medicamentos." A atuação na periferia dos problemas tem uma justificativa teórica que implica negar a relevância causal dos problemas de origem que consiste na ideia de uma “doença médica como qualquer outra”.
“Doença médica como qualquer outra"
A noção de que a doença mental ou transtorno mental é "doença física como qualquer outra" segue uma regra de produção discursiva que invalida qualquer consideração sobre sociedade, ambiente, comportamento, aprendizagem ou cultura pois nesse discurso está implícito que uma doença física não tem nada a ver com essas outras considerações. Nesse discurso as dificuldades não são medicalizadas (medicalização é o processo social que faz algo ser tratado pela medicina ou que utiliza a lógica da medicina como a psicologia ou a nutrição e desmedicalização são os entendimentos e tratamentos que utilizam o processo social em tratamentos com lógica diferente da inspirada na medicina) através de um processo social pois já são puramente médicas. Fazer a inversão da hierarquia entre discursos é uma mudança de percepção que pode ser libertadora.
"Sem o remédio eu não seria nada"
É um consenso na área de método científico que depoimentos pessoais não são evidências confiáveis. Mesmo assim, se uma pessoa faz um depoimento de que sem o seu psicofármaco não conseguiria viver a vida dela do modo como viveu isso é considerado evidência ou prova de que o tratamento realmente funciona e é necessário.
Esse tipo de depoimento é apenas uma narrativa contrafactual induzida pela autoridade médica. Se a pessoa tivesse conhecimento das limitações do modelo médico em saúde mental e dos psicofármacos ela não seria induzida a adotar uma narrativa de salvamento. A base dessas narrativas é o conhecimento e não a vivência pessoal. Pela vivência pessoal você poderia dizer que astrologia (ou melhor o comportamentalismo) funciona e adotar uma narrativa contrafactual do que teria acontecido se você não seguisse seu mapa astral. Para saber o que teria acontecido é necessário conhecimento para fazer predições. Uma predição bem feita não pode partir da vivência pessoal porque isso envolve sugestionamento anterior.
Saúde mental como "Silêncio da mente/cérebro" e o comportamento ativo
Uma das concepções de saúde na medicina é o silêncio dos órgãos. Nas questões de saúde mental seria transposto para silêncio da mente/cérebro.
Mas nem sempre tudo é tão interno como faz parecer esse modelo científico. Parte do que esse modelo afirma ser disfunção interna pode ser resultado de exigências ambientais ou contingências de reforçamento (circunstâncias) não satisfeitas. Para ter "silêncio da mente/cérebro" é necessário apresentar classes de comportamentos operantes que minimizem os eventos aversivos e maximizem os reforçadores positivos. Dessa maneira ativa e não através da passividade de uma estrutura orgânica é que a "mente/cérebro" entram em estado silencioso.
Fisiologia, adaptação social e processos sociais [Parágrafo acrescentado em 25/01/2024]
Alterar a fisiologia dificilmente é suficiente para prescindir da psicologia e aprendizagem porque a fisiologia de qualquer problema ou sintoma tem endofenótipos com múltiplos componentes que atuam em partes limitadas constituintes dos comportamentos (variáveis, sejam apenas mediadores ou origem) e também porque as relações com o mundo que envolvem os comportamentos são algo a mais que apenas fisiologia interna. O que o tratamento biológico realiza é alterar a fisiologia para que a pessoa sob cuidados médicos cumpra demandas ambientais de forma socialmente adaptativa e isso abre espaço para o aspecto social e cultural.
Valores sociais, padrões e drogas psiquiátricas
O discurso legitimatório é que os psicofármacos controlam disfunções biológicas, mas é razoável suspeitar que servem a valores sociais. Assim se compreende porque o dano biológico é considerado bom em sua função de adaptação social.
A hegemonia cultural da medicalização reflete em parte o desejo por padrões. O que é desejável é formado culturalmente mas há também um componente biológico nisso que não tem como desaparecer embora seja parcialmente alterável ou remanejável (a motivação pelo reforçador e a evitação do aversivo). Apesar de ser bom que as pessoas reflitam criticamente sobre os padrões culturais, pedir que as pessoas desistam dos padrões é pedir que abram mão do desejável ou melhor não cumprir condições que levam a obter o desejável (reforçador). Se o pensamento medicalizante e a prática medicalizante levam a cumprir algum padrão que leve a obter algo desejável, isso é portanto visto como um custo necessário. Logo, a indústria farmacêutica recebe muito dinheiro pois está prometendo satisfazer as pessoas. Por isso falar apenas em riscos da medicalização ou em aceitação não convence determinadas pessoas.
DSM: social e cérebro
Paráfrase de Isaias Pessoti: O DSM tem a função de excluir os fatores pessoais e sociais e atribuir explicação cerebral.
Senso comum: cérebro intacto / disfuncional
No senso comum há concepções bastante difundidas sobre o cérebro intacto (ou relativamente intacto) e o cérebro disfuncional que podem ser explicitadas da forma seguinte: “É impossível ter o cérebro intacto e ter problemas significativos de comportamento”. Ou inversamente: “É impossível não ter o cérebro intacto e não ter problemas significativos de comportamento”.
Alternativa à perspectiva ingênua
Medicalização
Dificuldade exacerbada de alteração: doença
Uma das propriedades definidoras do uso da palavra doença para se referir a manifestações comportamentais é a experiência de difícil controle e percepção de impossibilidade de alteração de comportamentos valorados negativamente. Essa experiência levou a psiquiatria no início de sua história das intervenções morais para o organicismo.
Observar efeito leva à crença na medicalização
A fonte da fé nas intervenções cerebrais provavelmente surge da observação de um efeito (uma experiência de controle do comportamento ou fisiologia). Mesmo que o efeito não seja inteiramente satisfatório ainda assim é inegável que produz um efeito. Esse efeito de alguma forma é prova de realidade do fenômeno (a caixa-preta em Bruno Latour: status de fenômeno indiscutível), sendo que há poucas barreiras de entendimento ou muitas vezes pouca resistência em adotar inicialmente esse tipo de intervenção. Disputar explicações abstratas pode ser menos convincente do que a produção de um efeito. A produção de efeito sobre a saúde mental por meio de aprendizagem é mais trabalhosa, demorada, complexa e incerta.
A disputa entre pensamento manicomial (organicismo de Kraeplin) e antimanicomial (ser humano necessariamente ligado à sociedade) interpretada sob perspectiva comportamental seria, respectivamente, sobre formas aversivas, coercitivas e danosas de manejo de comportamento versus formas amenas, reforçadoras e benignas de manejo de comportamento.
Medicalizar e desmedicalizar: autoridade vs entendimento
Qualquer coisa que é medicalizada ganha valor econômico. Alegações medicalizantes são difíceis de avaliar ou averiguar. As pessoas ficam na mão dos profissionais e sujeitas a promessas ou ao medo da ruína. Onde circula mais dinheiro é onde se costuma encontrar mais profissionais e pesquisas. A isso se soma a comodidade de poder apenas comprar um produto sem precisar entender muita coisa.
Quando ouvem um discurso não medicalizante as pessoas se sentem em condições de se posicionar. Gostos, concepções pessoais, sociais, culturais e emoções entram em jogo na avaliação dos discursos não medicalizantes. Como a saúde mental é o conjunto de todas as coisas, muitas pessoas sentem que conseguem encontrar outros meios de ficar bem. Portanto, sentem que não precisam dos profissionais não medicalizantes e dos complementares paramédicos. Promover aprendizagens de impacto não é algo simples. Apesar de todo mundo sentir que consegue aprender informações, há muita complexidade e rigor científico (se houver interesse nisso) em alterar comportamentos construídos ao longo da vida.
Manicomial e antimanicomial: desastres e acertos
A perspectiva ou tratamento manicomial aproveita ou lucra com tudo que dá errado na saúde mental, com seus tratamentos simples de aplicar. Enquanto a perspectiva antimanicomial ou desmedicalizadora precisa fazer muita coisa dar certo e alguns aspectos não superados podem empacar o processo de recuperação. Por isso, a dificuldade principal não é apenas o poder do complexo médico-industrial, mas também a natureza da tarefa de cada perspectiva.
Medicalização e comportamento explicativo
A grande difusão da medicalização das dificuldades em saúde mental é resultado da falta de acesso aos eventos longitudinais da história de vida, das diferentes áreas da vida no presente e da falta de preparo conceitual para relacionar esses eventos com as manifestações do comportamento e da falta de preparo para usar essas relações para modificação das manifestações do comportamento. Da perspectiva ingênua ou não preparada conceitualmente, o acesso e compreensão diz respeito às manifestações observáveis da fala, das emoções e dos "comportamentos" e sua relação com a concretude do cérebro. Essa perspectiva é a mais simples (que precisa de menos preparo) e por isso é muito difundida. Mesmo profissionais ou as pessoas que conhecem a própria vida podem não serem capazes de fazer essas relações. É uma tarefa mais complexa e sofisticada relacionar esses eventos e fazer o seu manejo para promover as aprendizagens que regulam a fisiologia (também apenas imediatamente observável e por isso medicalizada) e que alteram o repertório da pessoa conforme a necessidade (desmedicalização).
Logo, além da força econômica da indústria da medicalização ser um fator de reprodução dessa manifestação social, essa força econômica também é algo a ser explicado por essa falta de preparo para substituir as explicações internalistas (modelo médico em saúde mental).
Psicofármacos como indutores de esquemas ou programas de reforço
No terceiro volume de sua autobiografia, Skinner afirma que havia perdido o entusiasmo pela área de controle do comportamento pela psicofarmacologia. As razões eram efeitos colaterais e a possibilidade de substituição de controle do comportamento com psicofármacos por estabelecimento de esquemas ou programas de reforço. Esquemas ou programas de reforço são estabelecidos sob condições de reforço positivo ou de estímulos aversivos e consistem em padrões de apresentação de consequências que levam a padrões de frequência de comportamentos em relação a propriedades antecedentes específicas do ambiente. Estendendo a afirmação de Skinner, o uso de psicofármacos para o controle de comportamento consistiria no estabelecimento de predisposições no organismo para apresentar comportamentos que satisfaçam as exigências de alguns esquemas ou programas de reforço estabelecidos no cotidiano da pessoa para os quais a droga é administrada. É nesse sentido que os psicofármacos controlam o comportamento quando se diz que funcionam. A farmacologia comportamental demonstra como os psicofármacos alteram o padrão da frequência de comportamentos sob esquemas ou programas de reforço estabelecidos no laboratório de modo a aumentar ou diminuir a probabilidade do organismo de satisfazê-los. Esse raciocínio é generalizável para outras intervenções cerebrais e biológicas em termos de satisfação de exigências de esquemas ou programas de reforço estabelecidos.
Psiquiatria preventiva, resistência à desprescrição e resposta alternativa
Porque a resistência dos psiquiatras com a desprescrição é tão grande e porque é tão fácil hoje em dia ser considerado um 'doente mental incurável'?
A psiquiatria preventiva do autor Caplan identifica suspeitos de potencialmente causar mal social com a finalidade de sanar males sociais. Então se a pessoa não agrada às pessoas mais relevantes ou não se comporta segundo um tipo psicossociológico elegido como ideal ela está basicamente condenada. A patologia é considerada sinônimo de inadequação, desvio, distúrbio, inadaptação. Então parar com medicamentos seria realizar o potencial de causar mal social.
Nessa concepção, a cada crise ou situação de confusão se considera que a doença está evoluindo linearmente segundo uma perspectiva de história natural da entidade patológica. O desenvolvimento das patologias ocorre de forma a-histórica, ou seja, independentemente de tempo e espaço.
Alternativa: estado habitual e segurança
Um estado habitual ou padrão atingido tende a fornecer segurança que dificilmente uma boa demonstração conceitual consegue. Um estado habitual ou padrão também depende de condições ambientais. O reducionismo ontológico (“a natureza do fenômeno é apenas bioquímica”) não ajuda a considerar a possibilidade de atingir outro estado habitual ou padrão seguro através do manejo de condições ambientais favorecedores de aprendizagem. O reducionismo ontológico leva a tomar como apenas bioquímicas efeito de condições ambientais atuais e passadas.
Introduzir drogas psiquiátricas e mantê-las por bastante tempo é tratamento padrão seguro no discurso médico e no senso comum. O paciente e o médico tem todo o tempo do mundo para ajustar doses e drogas, com crises ocorrendo por vários anos. O paciente também tem todo o tempo do mundo para fazer ajustes em sua vida e sua saúde corporal. Estar em crise usando drogas por vários anos e depois alcançar um estado estável é visto como seguro e portanto se torna um estado habitual ou padrão. Além disso, a iniciação de uma alteração orgânica estabelece uma transição de repertório comportamental associada com uma adaptação fisiológica. O estado habitual ou padrão atingido se torna uma condição controle em linguagem experimental, isto é, algo a ser mantido constante.
Se houvesse a mesma tolerância para a não iniciação de psicofármacos ou o desmame como sendo um processo seguro que do que há com a introdução e manutenção de drogas psiquiátricas e seu comum e característico período longo de crises, novidades e ajustes, o estado habitual ou padrão seria não usar drogas e fortaleceria assim a sensação de segurança. A condição controle em linguagem experimental (manter variável sem alteração) seria não iniciar uma alteração orgânica que estabeleceria a necessidade de uma adaptação fisiológica, transição comportamental e transição social no início e na finalização do tratamento farmacológico. Isso evitaria um problema social de grandes proporções pois a medicina e a sociedade tem a percepção de impossibilidade de finalização do tratamento farmacológico.
Lógica:
Estado seguro -> (então) estado habitual ou padrão
Estado habitual ou padrão -> (então) estado seguro.
Fisiologização total da abstinência de drogas psiquiátricas
A abstinência de drogas psiquiátricas costuma ser totalmente fisiologizada mas os princípios do comportamento continuam atuando conjuntamente. Um dos fundamentos da análise do comportamento é descrever o comportamento em nível ontologicamente igual considerando a fisiologia um nível ontológico diferente.
Um exemplo: a abstinência de neurolépticos que a pessoa passa a ficar empolgada ou excitada demais é explicada fisiologicamente. Mas no mesmo nível ontológico do comportamento pode-se mostrar que a pessoa que a pessoa esteve muito tempo com todo o repertório em extinção e também em privação de reforçadores. Portanto, além dos níveis dos receptores de dopamina aumentados também há o histórico de privação de reforçadores (diversão) no ambiente interno da fisiologia e no ambiente externo.
Reforma psiquiátrica e comportamento
O pensamento manicomial (organicismo de Kraeplin) é direcionado para ajustar o mundo à concepção médica de um determinismo biológico discutível e de origens históricas infames. O pensamento antimanicomial (ser humano necessariamente ligado à sociedade) é direcionado a ajustar o mundo às necessidades das pessoas afetadas pela "loucura".
Tanto o pensamento manicomial como o antimanicomial negam parcialmente os determinantes do comportamento. O manicomial nega a relevância dos determinantes ambientais ou sociais, culturais, políticos, jurídicos, econômicos, etc. O antimanicomial não tem uma concepção positiva de ciência natural ou dos determinantes biológicos.
O manicomial defende um determinismo biológico discriminativo (sujeito biológico diferente e sem possibilidade de ter liberdade, igualdade e cidadania) e uma proposta de coerção correspondente. O antimanicomial defende uma determinação social (sujeito cidadão com possibilidade de igualdade, liberdade e cidadania) e uma filosofia da liberdade ou do livre-arbítrio. Isso é compatível com concepções de que as ciências naturais tratam da necessidade como característica das leis naturais enquanto o social teria a característica de ser um âmbito da liberdade.
O manicomial poderia encontrar esquemas explicativos alternativos que não está disposto a considerar. O antimanicomial ajusta toda a sociedade e cria estruturas públicas sem se preocupar de maneira séria com determinantes da aprendizagem de comportamentos sob enfoque comportamental. Tanto o manicomial quanto o antimanicomial atuam ao redor do comportamento (no orgânico e na sociedade respectivamente) enquanto a perspectiva comportamental fornece a possibilidade de alterar os comportamentos ou interações com o mundo (“sintomas”). Ambos poderiam ser mais eficientes e menos custosos se admitissem os determinantes da aprendizagem de comportamentos conforme a análise do comportamento e áreas biológicas afins.
Famílias contra a reforma psiquiátrica experimentam desamparo de fato e famílias antimanicomiais são menos comuns. A diferença de discurso é também uma diferença de experiência. É preciso fornecer ensino de repertório para ambos os tipos de famílias (e os pacientes/usuários) para contribuir com a redução de desamparo e da necessidade de internações seja em hospitais psiquiátricos ou em serviços substitutivos. Isso seria feito demonstrando-se a ordenação ou regularidades do comportamento que levaria a maior produção dos efeitos desejados sobre o mesmo (reforma psiquiátrica) e redução da perplexidade com experiências negativas (lógica da manicomialidade).